Revisitar as fontes – Beber da intuição primeira
O tema da nossa peregrinação de hoje, Revisitar as fontes – Beber da intuição primeira, convida-nos a fazer um caminho de regresso, um percurso pelos sítios da história, não só do ponto de vista geográfico, caminhando pelas artérias da cidade ao encontro dos lugares com significado especial no contexto da identidade blasiana, mas também, e sobretudo, do ponto de vista cronológico, mediante uma viagem no tempo, um retorno ao passado, que só é possível graças àquele processo interior que envolve mente e coração, dimensão racional e dimensão emocional, intelecto e sentimento, e que pode traduzir-se simplesmente com a expressão “fazer memória”.
A atividade que hoje nos propusemos desenvolver inscreve-se no âmbito das comemorações do centenário da ordenação sacerdotal de Joaquim Alves Brás (19 de julho de 2025), e põe em relevo as marcas indeléveis que o então jovem sacerdote, movido pela fidelidade à sua vocação e ao carisma recebido, deixou gravadas nesta cidade da Guarda.
Para nós, hoje, fazer memória não tem por finalidade distrair-nos dos nossos problemas e preocupações nem dos nossos múltiplos compromissos. Não queremos alienar-nos dos nossos deveres, mas, precisamente, queremos crescer na capacidade de cumprir as nossas obrigações e as nossas responsabilidades de uma forma mais alegre, mais apoiada, mais eficaz, mais espontânea, mais natural e mais enraizada.
Porque é importante fazer memória? De que forma regressar ao passado, visitar a história, nos pode ajudar a ser mais fiéis à nossa vocação de cidadãos no mundo presente, de cristãos e de membros desta família blasiana?
A experiência humana, bem como a antropologia e a sociologia, demonstram-nos, de muitos modos e feitios, como existe, no mais íntimo e profundo de cada um de nós, uma inclinação inata e natural para cultivar memórias. O exercício da memória é um ato vital para o desenvolvimento e crescimento dos indivíduos e das sociedades. Há pessoas, histórias de vida, experiências humanas, descobertas, inovações que, pela sua grandeza e importância, merecem ser lembradas, recordadas, celebradas e imitadas ao longo das gerações.
As dinâmicas da memória recorrem com frequência a uma diversidade de objetos e artefactos que fazem parte da nossa vida quotidiana. Pensemos, por exemplo nas fotografias, nos retratos de família, nas pinturas, nas estátuas e outras esculturas memoriais, em determinados nomes de ruas, nos arquivos, nos museus.
Ao longo da história, cada geração, qual elo de uma corrente ininterrupta, vale-se destas e de outras ferramentas – desde as célebres pinturas rupestres às narrativas de sabor mitológico contadas à lareira – para passar às gerações vindouras um património precioso feito de conhecimentos, de experiências e de aprendizagens marcantes.
Esta predisposição genética e orgânica, psicológica e mental para o exercício da memória diz-nos simplesmente que não podemos crescer sem raízes. Quando alguém conta uma história, expõe uma fotografia, escolhe um nome para determinada rua, está implicitamente a manifestar o desejo e o propósito de comunicar um ensinamento, de apontar um sentido, de transmitir uma tradição, que recebeu dos antepassados qual substrato, húmus, ou seiva vital necessária para o crescimento da pessoa enquanto membro de uma determinada sociedade, enquanto fiel de uma determinada religião, enquanto elemento de um determinado grupo familiar ou cultural.
Compreendido neste contexto, o ato de fazer memória é muito mais do que um mero exercício da mente ou um processo puramente racional desenvolvido com base nos dotes intelectuais de cada um.
O ato da memória envolve a totalidade do nosso ser, implica a unidade da nossa pessoa enquanto corpo e espírito. Toca-nos no ponto mais profundo, mais central e mais íntimo da nossa identidade. Tem efeitos não só na dimensão cerebral, mas também, e sobretudo, na dimensão emotiva, onde se consolidam as convicções e os afetos e onde se constroem as grandes decisões e as opções fundamentais.
O termo recordação (recordar), tem no centro o conceito latino cor cordis, que em português deu origem à palavra coração e às suas derivantes (cardiologia, cardiólogo, cardíaco…). Recordar significa, pois, neste sentido, voltar ao passado para reviver com o coração, isto é, de forma profunda e total, um acontecimento, uma experiência, uma pessoa, uma situação.
A Sagrada Escritura, que é o resultado de uma longa cadeia de memórias, contém, tanto no Antigo como no Novo Testamento, inúmeras passagens que não são mais do que incitação à memória, a fazer memória, a recordar os grandes gestos de Deus em favor da humanidade.
No Antigo Testamento, o ato de fazer memória está ligado, sobretudo, à Páscoa judaica, memorial da libertação do Povo da escravidão do Egito e à apresentação dos Dez mandamentos. Toda a história do Povo de Israel é marcada por esta experiência. A travessia a pé enxuto pelo mar vermelho e os prodígios a que o povo assistiu durante a passagem pelo deserto, ao longo de quarenta anos, constituiu um acontecimento fundante da própria identidade do Povo hebreu como Povo da promessa. Por isso é importante recordar regular e periodicamente este acontecimento, em determinada data e de determinado modo, para que as novas gerações não o venham a esquecer completamente, com o risco de perderem também a noção da sua identidade e do caminho que devem seguir.
Escuta, Israel, o Senhor e só ele é o nosso Deus. Ama o Senhor, teu Deus, com todo o coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Que os mandamentos que hoje te dou estejam sempre na tua memória. Ensina-os continuamente aos teus filhos e repete-os, tanto ao deitar como ao levantar, quer estejas em casa, quer vás de viagem. Deves trazê-los no teu braço como um distintivo, na tua testa como emblema. Escreve-os nas ombreiras das portas da tua casa e em todos os teus portões. (Dt. 6, 4-8)
Quando os vossos filhos, um dia, vos perguntarem que instruções, leis e preceitos são estes que o Senhor, nosso Deus, nos deixou, devem responder assim: “Nós fomos escravos do faraó no Egito, e o Senhor, com o seu grande poder, tirou-nos de lá. Realizou sinais e prodígios enormes e terríveis contra os súbditos do faraó e toda a sua casa. Nós fomos testemunhas. Ele tirou-nos então de lá, para nos conduzir e nos dar a terra que tinha prometido aos nossos antepassados. Mandou-nos pôr em prática todas estas leis para respeitarmos o Senhor, nosso Deus, para termos prosperidade, como acontece atualmente e podermos conservar a vida que agora temos. (Dt. 6, 20-24)
O Decálogo, ou tábua dos Dez Mandamentos, está intimamente ligado a esta memória. São a expressão do caminho que os membros do Povo devem seguir: A identidade comporta sempre uma específica conduta, uma forma peculiar de viver. A vida livre, próspera e feliz do Povo constrói-se na fidelidade ao Código da Aliança.
Em direção oposta, o Salmo 105 (106) lembra os perigos de uma vida fracassada e desventurada que advêm quando o Povo despreza a memória da sua história passada e esquece as suas raízes:
No Egito, os nossos antepassados não deram atenção às tuas maravilhas; não se lembraram das muitas manifestações do teu amor leal. Esqueceram- se de Deus, seu Salvador, que fizera coisas grandiosas no Egito, maravilhas na terra de Cam e feitos temíveis junto ao mar Vermelho.
Prestaram culto aos seus ídolos, que se tornaram uma armadilha para eles.
Sacrificaram seus filhos e suas filhas aos demônios.
Derramaram sangue inocente, o sangue de seus filhos e filhas sacrificados aos ídolos de Canaã; e a terra foi profanada pelo sangue deles.
Tornaram-se impuros pelos seus atos; prostituíram-se por suas ações.
Por isso acendeu-se a ira do Senhor contra o seu povo e ele sentiu aversão por sua herança.(vv. 20-22.37-40)
No Novo Testamento, entre as múltiplas referências à importância da memória, quer nos Evangelhos, quer nos outros escritos, destaca-se o mandato de Jesus aos discípulos no decorrer da última Ceia: “Fazei isto em memória de mim”.
Na Eucaristia, especialmente ao Domingo, dia semanal da Páscoa do Senhor, ao cumprirmos este mandato, revivemos de forma admiravelmente autêntica o acontecimento pascal da morte e da ressurreição do Senhor Jesus.
Não é apenas uma lembrança do que aconteceu, mas é uma renovação do mistério pascal em que participamos e nos sentimos plenamente envolvidos como membros do Corpo Místico de Cristo.
Por isso se chama à Eucaristia “Memorial”. Pela importância vital do seu significado para os cristãos – que levou os cristãos do século IV a responder “sine dominico non possumus”, ou seja, sem o dom do Senhor, sem o Dia do Senhor, não podemos viver – a Igreja coloca a Missa dominical na lista dos atos obrigatórios dos discípulos de Cristo, sob pena de se romper e esquecer o laço, a raiz, o fundamento da identidade cristã.
A Páscoa cristã, memorial da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus, é o acontecimento fundante da nossa identidade de batizados; e a conduta própria dos discípulos de Cristo distingue-se pelo seguimento do mandamento do amor: “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”. Monsenhor Joaquim Alves Brás encarnou de modo admirável esta identidade e pôs em prática, de modo exemplar esta conduta.
Embora o significado do conceito Memorial quando aplicado à Eucaristia seja imensamente maior, tanto do ponto de vista teológico como ontológico, do que se aplicado à experiência que hoje fizemos, nem por isso devemos prescindir de considerar a nossa peregrinação à Guarda, neste dia, como um verdadeiro Memorial da pessoa, da vocação, do carisma e da obra de Monsenhor Joaquim Alves Brás.
Pela data, em pleno mês de março, tão ligado a acontecimentos chave da sua existência, como o nascimento e a morte, mas também ligado a decisões importantes sobre o reconhecimento da sua obra ou das virtudes da sua vida;
pelo lugar, esta cidade da Guarda que foi testemunha da génese e do florescimento de algumas das suas mais importantes intuições;
pelos protagonistas, os diversos grupos vindos dos vários pontos do país (e não só), mas unidos pelo mesmo espírito blasiano e pelos mesmos sentimentos de admiração e de veneração para com a figura do Padre Brás que cada um pôde manifestar de diferentes formas, especialmente através da oração, rezada ou cantada, e da contemplação;
pelas realidades evocadas, desde a atenção do Padre Brás à situação precária e, em muitos casos, de graves carências materiais e espirituais das jovens criadas, à profunda espiritualidade que formatou toda a sua existência, ou à sua visão lucidamente evangélica sobre o mundo, a família, a humanidade e os seus problemas,
podemos falar deste dia como um autêntico memorial, isto é, um acontecimento, rico de simbologia, que nos envolve, que nos enche e nos preenche, que desperta em nós sentimentos de afeto, de admiração e de gratidão, e que reforça o sentido da nossa identidade de membros da família blasiana, disponíveis para seguir os seus exemplos de fé viva e ativa e de amor para com Deus, para com a Igreja e para com o próximo, prontos a dar continuidade aos percursos de bem que iniciou, e que calcorreou até ao seu último suspiro, em favor das famílias e das pessoas marginalizadas.
Mons. Fernando Matos
Postulador da Causa de Canonização do Venerável Mons. Alves Brás
Peregrinação da Família Blasaina à Guarda | 19 de março de 2023